Fui marcada, como uma tatuagem feita a ferro e fogo. Sabia que esse processo de montagem do espetáculo O OLHAR DE NEUZA traria
mudanças. Tive medo. Quis desistir de tudo. Quis desistir de ser atriz. Senti-me
incapaz, vazia. Sofri. Uma sensação absurda de vazio, a noção clara do tamanho
da minha solidão. Tentei fugir como de costume, mas dessa vez, o processo
cobrou vida vivida e eu, não tendo mais como fugir, vivo. Empresto minhas
fragilidades, minhas contradições para dar vida a esse personagem. Enfrento-me
perseguindo uma centelha, às vezes fugaz, de humanidade. Quando penso que
encontrei algum caminho, se no dia seguinte não recomeço do zero ele se esvai
em meio a minha vaidade.
Vasculhamos nossas
vidas, deparamo-nos com nossa miséria humana cotidiana, emprestando um pouco de
nossas contradições ao personagem. Digo nossas vidas, pois os que fazem teatro
de grupo tem a possibilidade de participar intensamente do processo e assim, a
CIA DO ABRAÇÃO pôde emprestar humanidade a Neuza.
Nossos ensaios foram
poucos, cirúrgicos, profundos. A consciência de que seriam poucos nos fazia
entender a importância de aproveita-los ao máximo. Mentiria se dissesse que foi
fácil. Foi muito difícil. Escavar abriu e expos feridas que todos os dias eram
novamente escavadas. Muitas questões foram levantadas: Quem eu sou? Por que
escolho ser atriz? Por que naquilo a que chamamos dor ou feiura está contido
tanta beleza? Por que faço teatro? O que
dizer através desse espetáculo? Tentamos entender profundamente o que estamos
fazendo, por que estamos fazendo, qual o sentido pra cada um de estarmos
juntos, construindo uma obra artística. São questões que levantamos todos os
dias no ABRAÇÃO.
Partimos da intuição que aliada aos nossos desejos nos
impulsionam. Depois conversamos muito, sempre. Tenho o privilégio de ter uma
diretora inconformada, um grupo inconformado. Esse inconformismo gera movimento,
pulso de vida em nossas obras teatrais de repertório que, a cada nova
apresentação, são revistas num processo de entendimento do sentido de cada uma
delas e de nosso papel de artista na sociedade em que vivemos.
No começo desse novo processo de trabalho a busca foi por me
tirar o chão, o eixo, o prumo, limpar meu excesso de técnica e racionalidade
procurando a perda do controle, procurando a energia verdadeira para cada
situação exposta pela personagem para chegar
numa mulher que está cansada, fragilizada, cheia de dúvidas, uma mulher que
sente-se feia e velha, deprimida, que toma remédios que a fazem suportar a vida
que leva, que num rompante de loucura e lucidez descobre quem de fato ela é. O
resultado dessa busca se vê nos primeiros minutos do espetáculo onde NEUZA corre
muito. Um desafio a ser perseguido a cada novo espetáculo. Um caminho que pode me levar ao acaso da respiração ofegante, da fala entrecortada pela
falta de ar, da tontura, do cansaço muscular e vocal levado ao limite.
A primeira leitura com o livro “A MULHER QUE CAI”, que inspirou a criação de nosso texto, do
escritor curitibano Guido Viaro me causou uma certa estranheza. A medida em que fui relendo e entendendo melhor o contexto, acabei me apaixonando pela forma contundente e ao mesmo tempo idealista e sonhadora como o Guido apresenta essa personagem. Foi um mergulho no universo onírico e existencialista
proposto por ele, nos devaneios dessa mulher cheia de sonhos, ideias e desejos
maravilhosos, mas que estão “encobertos pelo entulho da rotina”. O período de
escolha de trechos que poderiam fazer parte de nosso texto teatral foi
prazeroso trazendo-me um novo ânimo. A boa e velha segurança, algo em que se
agarrar. Haviam tantas passagens interessantes pra escolher. A amarração da dramaturgia, tecida
artesanalmente, foi um momento onde várias ideias e informações foram sendo
agregadas. Texto, marcas, improvisos, músicas, tudo foi surgindo buscando
traduzir poeticamente o universo de NEUZA.
Descobrir quem é
essa mulher que cai, que cai em si. A vida a impele a fazer uma pausa. Ela revê suas escolhas, sonha em fazer diferente, se enfrenta
tentando entender o que a incomoda. Ela entende o caminho que suas escolhas,
pautadas pelo comodismo burguês, a levaram. As suas escolhas foram feitas por
uma mulher moldada para ser assim. Ela se descobre desconhecida,
não sabe quem ela é e, neste instante de pausa, quer tentar entender-se.Neuza está em pleno
climatério, período que marca o fim do ciclo menstrual, a menopausa. Ela perda
a sua função social maior de mulher, perde sua capacidade reprodutiva e sexual.
Lida com o desgaste do casamento, a falta de libido típica desse período, o
desânimo e a depressão, a perda da juventude, a noção cada vez mais clara de
que tantos anos de anestesiamento psíquico bio social, formaram uma mulher que
apenas seguiu um caminho já previamente traçado pela sociedade. Quem de fato ela é?
Durante o processo
tivemos ainda a oportunidade de estabelecer alguns intercâmbios importantes:
- Com o Diretor Paraguaio Wal Mayans que esteve acompanhando todo o processo e pode contribuir através do trabalho por ele desenvolvido denominado Primigenia Teatral.
- Com a atriz e produtora Gaúcha Rosi Jacomelli radicada na Argentina e que esteve durante este ano trabalhando na montagem de seu monólogo O MAPA DO MEU MUNDO, também dirigido pela diretora artística da CIA DO ABRAÇÃO. Sua estreia foi em julho de 2013, na Sala Simone Pontes, da Sede da CIA DO ABRAÇÃO.
- Com o ator, produtor e diretor da Cia Yepocá de Teatro, de Belo Horizonte, através da montagem de seu monólogo, também dirigido pela diretora artística da CIA DO ABRAÇÃO, intitulado DES ESPERA. Sua estreia foi em outubro de 2013, na Sala Simone Pontes, da Sede da CIA DO ABRAÇÃO
Partilhamos nossos
processos, nossa opção pela solidão do monólogo, nossas pequenas conquistas e
frustrações diárias. A riqueza do encontro com a humanidade de cada artista e
do que surge através da cooperação mútua.
Também partilhamos a
experiência da oficina de Primigenia Teatral ministrada por Wal Mayans. Passar
por uma oficina do Wal nos fortalece. Seu trabalho, desenvolvido durante anos
através de sua formação com grandes mestres orientais, sua participação em
importantes grupos teatrais europeus como o teatro antropológico de Eugênio
Barba e posteriormente o desenvolvimento de sua pesquisa como fundador a ONG
Tierra Sin Mal e como diretor do Grupo Paraguaio Hara Teatro, nos proporciona
uma riqueza e um privilégio únicos. O rigor técnico, a importância da
sacralização de nosso trabalho, de repensar a sociedade em que vivemos, a
necessidade de resistirmos como teatreiros que somos, de resistirmos através de
nosso trabalho diário que nos fortalece e nos prepara para a vida e a
morte de estar no palco defendendo uma ideia, um ideal.
Para a sonoridade do
espetáculo, desde o início, a direção tinha uma intuição, um desejo de
trabalhar com fados portugueses. Posteriormente fomos entender que fado, ou
destino ou fardo, tinha mesmo muito a dizer sobre o mundo de NEUZA. Certeiras as músicas foram chegando pra ficar nos
inspirando e impelindo a buscar cada vez
mais sentido para o que estamos fazendo. Em algumas, quadras de Fernando Pessoa foram
musicadas. Elas foram compostas pela Diretora musical, compositora e cantora Karla
Izidro que trabalha conosco desde 2007, e que desta vez, se disponibilizou a cantar
ao vivo trazendo ao espetáculo uma riqueza impar. É um privilégio dividir a
cena com a Karla uma artista madura, que compartilha do nosso pensamento sobre
o fazer artístico, criando uma identificação que facilita o trabalho.
As
primeiras imagens sugeridas pela direção também tem muito haver com o fado. Uma
mulher, melancolicamente, apenas observa através dos vidros de uma janela
molhada pela chuva. Seu olhar vê longe e ao mesmo tempo se vê, olha pra dentro
de si mesma. Dessa imagem surge a necessidade de trabalharmos com uma janela.
Nasce nosso cenário, com objetos leves que podem ser manipulados durante o
espetáculo conforme a necessidade de cada cena propondo sua resignificação. Uma
janela com sua folhas que se desprendem da base e viajam pelo espaço cênico ajudando
a criar um ambiente onírico. Tudo é preto e conforme a incidência de luz, esses
objetos aparecem ou desaparecem, flutuam ou encontram-se amparados. Envolvendo as janelas, grandes cortinas vermelhas, que vem do teto e se estendem
por muitos metros pelo chão colorem o preto. Durante o desenrolar do processo, fizermos
inúmeras pesquisas de utilização desse material que, simples e versátil, pôde
nós oferecer muitas possibilidades. Ao final, ficou o essencial, o que de fato
poderia nós ajudar a contar essa história.
Uma rosa vermelha repousa solitária num canto do palco. Folhas secas espalhadas pelo chão
dão um tom amarelado ao espaço cênico e quebram com a quase monocromia do preto, propõe uma nova textura. Quando pisoteadas elas imprimem som ao espetáculo.
O
envolvimento e interesse crescente de nosso iluminador Anriaider com este
projeto, trouxe ao espetáculo um desenho de luz feito a quatro mãos. Outra
parceria que se firma cada vez mais na medida em que nossas afinidades se
solidificam. Quadro a quatro a luz foi
desenhada por ele e pela Letícia numa proposta de utilização de baixas
intensidades, muitas sombras e poucas cores.
A ESTREIA
A sensação é de ter ganho um inestimável presente. Agradeço
imensaprofundamente a CIA DO ABRAÇÃO, a cada um de seus integrantes, a todos
que ajudaram a construir essa história. Foi uma estreia mágica. O público
presente embarcou no espetáculo, partilhando com a CIA DO ABRAÇÃO, cada
instante proposto pela obra teatral, contribuindo para materializar essa noite
especial.
A partir da estreia pude começar a enxergar melhor o caminho
percorrido. Percebo como tudo foi sendo construído como uma teia tramada aos
poucos, artesanalmente. Foram anos desde as primeiras ideias até a estreia. O
caminho que trilhamos reflete as nossas escolhas e O OLHAR DE NEUZA é fruto
delas. Escolhemos trabalhar por anos em um mesmo projeto até que ele se
concretize.
Nesta primeira temporada pude sentir, através do contato com
diferentes tipos de público que estiveram presentes, a força da obra. O OLHAR
DE NEUZA emociona, faz rir e chorar. Plateias barulhentas e desatentas vão aos
poucos silenciando e a energia própria da obra se instaura. Essa obra tem o que
dizer e diz. A comunicação com o público se estabelece e isso tem sido muito
gratificante.
Durante a temporada continuamos trabalhando buscando entender
o que acontece com o público diante da obra; o caminho que o personagem precisa
trilhar para que a obra possa ser degustada pelo ator e pelo espectador a cada
sessão. A busca pela inteireza e plenitude diante de cada espectador nesse momento único de
fruição da obra.
Posso agora incorrer num dos maiores enganos do ator:
cegar-me com tantos elogios, permitir que o meu ego seja maior do que o teatro. Para que o teatro aconteça realmente é necessário travar uma
luta diária comigo mesma, a cada sessão, buscando beijar a alma dessa personagem,
buscando viver, através dela, cada fragmento de beleza e poesia que essa obra
propõe.
Ao final da primeira temporada sinto-me recompensada pelas
dores do início do processo onde quis desistir de tudo. Através de NEUZA tenho a possibilidade de
vivenciar o sublime encontro com o sagrado. Que eu possa viver intensamente cada sessão. Que o teatro
aconteça a cada sessão. Que eu mereça a graça, a honra e o privilégio de estabelecer
verdadeiramente a missão de ator.