Há pessoas que passam a vida à espera de que a felicidade lhe venha bater à
porta. Que, num repente, os ventos mudem de direção e uma luz, numa fresta que
seja, possa trazer um alento, arejando o ambiente e, com ele, um cômodo
qualquer perdido entre o sótão e o porão, num espaço que, sem nos darmos conta,
foi se formando dentro de nós.
Como se
uma voz ao longe nos chamasse sem precisar ao certo ser uma cantiga de ninar ou
um lamento de morte: um hiato, um instante de suspensão como se alguém, de
posse do controle remoto, num gesto banal, simplesmente, parasse o tempo.
Nesse
instante que não é mais o ontem, não ainda o amanhã, mas que, parado, deixa
mesmo de ser, e se transforma num não-ser, um não-ser porque estando fora não
pode entender o que se passa por dentro, e não sendo ação, se torna
negar-a-ação.
É isso!
É o que os olhos através da vidraça parecem dizer num silêncio que grita. Sim,
não é delírio, O silêncio estampado nos olhos envidraçados por trás da vidraça
pouco iluminada grita alto, quase insuportável.
E nós,
meros espectadores, talvez num átimo de lucidez, nos damos conta de que é tarde
de mais. O olhar que grita, em silêncio, envidraçado, nos atraiu, sem que
possamos mais recuar. É um canto de sereia num olhar de Medusa.
E nós,
agora atores nesta história, autômatos sob o olhar vazio que nos atrai,
iniciamos a procissão, e vamos ocupando nossos lugares, ouvindo o partir das
folhas secas que nos resgatam na memória impossível de precisar o momento
exato, um convite a vasculhar, ou seria vasculhar-se?
Tarde
de mais. Nova escuridão nos mantem em alerta diante do imprevisível. E uma voz
que talvez viesse de dentro de nós mesmos nos atesta o instante de pausa do
qual não podemos fugir. A pausa que nunca demos, porque a rotina da vida nos
impõe um eterno ir, porque sempre temos inúmeros compromissos e um sem número
de prioridades inadiáveis.
Impossível
fugir agora! O controle remoto permanece em pausa. O olhar é agora algumas
dezenas de olhares aos quais tememos encarar, mas que estão lá, e nós sabemos.
Não
encarar, tentar fugir, não dar vazão ao que ficou por tanto tempo sob o
controle. Controle. Passamos o tempo todo tentando ter o controle das nossas
vidas e não percebemos que vamos aos poucos perdendo o controle de nós mesmos.
Um
olhar se sobressai, e assusta, e intimida, e nos petrifica, porque o
reconhecemos ou melhor, desconhecemos, pois é o nosso olhar que tomando vida
própria se desloca do nosso rosto e vai se alojar no rosto de Neuza refletido
no espelho. Um espelho sem face, que por isso mesmo nos atravessa.
Numa
tentativa de fuga, buscamos voltar à rotina, à segurança da rotina com a qual
nos habituamos, a rotina que nos coloca, numa zona de conforto milimetricamente
limitada. Ah, é tão mais cômodo ter fronteiras determinadas! A rotina nos
aprisiona, é verdade, mas ao mesmo tempo nos protege. -Nos protege?! - sim, nos
protege. -De quê? De nós mesmos.
É tão
mais fácil manter mente e mãos ocupadas, ter o ritmo do relógio para
acompanhar, ter coisas importantes a fazer, em uma palavra, ser útil. -Pra
quem?!- pra todos, pra sociedade, pra família, pros outros. -Pra si mesmo?! -
Não. Não é importante ser útil pra si mesmo. Não há tempo para essas bobagens.
Que importa?! A quem importa?!
Gostamos
de tantas coisas que já desgostamos para depois tornar a gostar. Quem se
importa?! O quarto arrumado, a comida feita, o lixo jogado fora. Tudo feito que
nunca foi percebido porque só é visível o que se deixou de fazer.
Suspensos
na pausa do tempo, ao mesmo tempo abrimos as portas para qualquer tempo,
Perpassamos o tempo corrido e nos deparamos com a realidade de um tempo que foi
percorrido mas que não foi vivido e que, talvez, já não haja mais tempo de se
viver.
O que
foi que fizemos do nosso tempo? O que foi que o tempo fez de nós? Ainda há
tempo?! Quantas vezes desejamos parar o tempo?! Tantas outras pareceu se
arrastar teimoso, a nos contrariar. As marcas no rosto incontestáveis gritam
que o tempo passou e nós, que passamos a vida a esperar pelo tempo certo, nos
damos conta dos últimos grãos de areia que se escoam rápido na ampulheta. Será
tarde de mais?!
O
enquadramento se repete, se multiplica, ora aqui, ora ali, apontando que a
jornada está terminando. -Terminando?! - Como assim, se corremos uma vida
inteira para garantir o momento de aproveitá-la?! Justo quando a rotina e os
compromissos inadiáveis já não fazem mais parte do nosso dia?! Agora, que temos
todo o tempo do mundo, o mundo não tem tempo pra nós?! Onde, em qual curva do
caminho deixamos nossos sonhos e nossos desejos serem silenciados e nem se quer
nos demos conta?! Que personagem é esse que habitamos como os grande bonecos
carnavalescos, e que nos escondeu até de nós mesmos?! De quem são estes olhos
que o espelho teima em refletir mas que não conseguimos re-conhecer?!
Um
personagem à procura do ator, tentando dar vida a peças de figurino, objetos e
partes de cenário que se negam à função.
Os
risos logo se fazem ouvir. Difícil precisar o significado. Riso nervoso,
disfarçado, riso de quem sabe mas não gostaria de lembrar que também terá o seu
instante de pausa. Talvez já o tenha tido, até. Não consegui ri. As lágrimas
fecharam as comportas impedindo que ele pudesse se quer nascer. O espelho não
mente. O tempo é implacável. Não há mais tempo a perder.
Ninguém
sabe quem é, e o mundo carece de príncipes meninos que surgindo do nada, no
deserto da nossa alma, nos possa ver como únicos.
O tempo
passou. E num momento nos damos conta de que apenas a nossa vida está em pausa.
O vento sopra, crianças correm, barcos pedalinhos atravessam o lago e sacos de
plástico bailam no ar insensíveis ao nosso momento.
O olhar
se perde ao longe. Vaga. Como o barco sob a espuma. Os olhares se cruzam, Se
reconhecem. Se cumpliciam. Se deixam abandonar. E nós, já não meros
espectadores, nos cumpliciamos também e nos jogamos ao mar, novamente em
procissão.
Como
disse o poeta: “Navegar é preciso. Viver, não é preciso.”
Parabéns
à Fabiana por se fazer de mar e navio. Parabéns à Carlinha por se fazer de
vento e vela. Parabéns à Cia. do Abração por pintar na tela um crepúsculo que
nos convida a lembrar que a noite é prenúncio da alvorada.
Um
grande abraço,
Denize
de Lucena.
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