... Como eu continuo essa história? Até outro dia eu queria
desistir de tudo. Queria até desistir de ser atriz”
A princípio acredito que não
tenho muito com o que colaborar no blog que fala sobre o processo do olhar de Neuza.
Esse texto fala sobre o processo de mim, que afinal faz parte do Abração, um
ciclo de processos individuais e coletivos.
Não tenho absolutamente nenhuma
outra atividade na minha vida além do Abração, estou aqui de manhã, de tarde,
de noite. E fui a que menos participou
do processo do Olhar de Neuza. Por que será? Para fugir da Neuza, do Abração,
do compromisso? Não. Para fugir de mim.
Para fugir da iminência do
sofrimento do processo criativo. Para fugir das dores inerentes ao trabalho do
ator. Claro, a Dire fala sempre sobre mudar a visão, o ponto de vista, que o
não saber e o errar devem nos deixar felizes e entusiasmados por ter coisas
novas para aprender e descobrir. Mas não é tão fácil colocar em prática. Muitas
vezes penso que a Dire é realmente um ser iluminado, alienígena, que desceu pra
Terra numa nuvem de camurça vermelha, sua primeira cortina, que seus glóbulos
vermelhos são minúsculos atores, bailarinos, trapezistas, movendo-a
exclusivamente pela arte, em cada momento essencial de sua vida. Porque não é
pouco difícil. É muito difícil viver assim.
Assistir o processo “de outra
pessoa” (entre aspas, porque no Abração tudo é coletivo) fez eu me sentir mal.
Assisti dois ou três ensaios. Os erros, as repetições infinitas, as
frustrações, que é claro, acontecem no processo, faziam com que eu quisesse
abrir um buraco na arquibancada e ir embora. E as alegrias, as conquistas, os
acertos? Não deu tempo de ver, saí correndo nos primeiros frames. Assisti os
ensaios finais, só depois que a Dire já tinha feito picadinho da Fabiana umas
milhares de vezes, e já tinham, juntos, juntado os pedaços e reconstruído mil
mundos e possibilidades. E me surpreendi com a lindeza desse espetáculo. “Viu,
que lindo, e como foi rápido e fácil”, pude pensar, tendo fugido da parte
difícil do processo. Mas não há escapatória. Apenas adiei o processo que,
então, aconteceu dentro de mim posteriormente.
“Eu sofro muito. Eu quero negar
tudo e quero só ser feliz, ser feliz e só”. Sou uma pisciana, do dia 05 de
março. Quem se interessa por signos e astrologia sabe o que isso significa:
sofro. Sofro por tudo e por todos, choro, me esfarelo em drama, com a mesma
facilidade com que me alegro. Mas não na mesma frequência. Já sofro por
existência, não é necessário sequer que aconteça algo de ruim. E fui cair
justamente neste mundo, de artes, de criação, de confronto com a realidade, com
a sociedade, com a barbaridade da existência.
“Quanta gente consegue viver bem melhor sem procurar um caminho, nem
sequer suspeitar que seja necessário acha-lo”. Mas uma vez que você toma
consciência deste caminho, escondido entre os casos e acasos do destino, da
vida, e do mundo, esperando por ser encontrado, não há mais volta. Ah, dilema.
Ao mesmo tempo que, claro, abençoado caminho de vida, que me permite
transformar este sofrimento, este sentimento, este viver, em algo que vibre com
o universo, e não em mais uma receita médica de ansiolíticos, antidepressivos,
antinervosismos, antichorismos, antividismos .
Mas depois de constatado esta
pequena bomba que instalei em meu coração, como desativa-la? Como escapar da
vontade de fugir de tudo, de desistir da vida de atriz, da vida de grupo. Digo
como: não há como. Já disse, uma vez ampliada a consciência, o sofrimento é
ainda maior tentando negar a existência desses caminhos. Como voltar ao status
de “empregada”, trabalhar 8h por dia por objetivo nenhum? Como voltar a
movimentar um sistema nocivo, corrompido, tendo consciência do poder de
transformação do teatro? Olho para minhas tatuagens: porque faze-las, se a dor
é quase insuportável? Tenho minha resposta: o resultado. Ser atriz faz de mim
um processo ambulante, me aproxima de algo que precisamos e podemos ser.
Primeiramente comparei para mim com as drogas, que causam sofrimento, mas nos
viciam em seus prazeres, a tentação de olhar nos olhos da Medusa. Mas a
diferença está em tornar-se cada vez mais lúcido, mais forte.
Várias vezes, quando falávamos em
grupo sobre este processo, e que foi apontado o distanciamento, meu e de outro,
a sugestão do que escrever era começar com “perdi a oportunidade de acompanhar
um processo de criação por...”. Mas não sinto assim. Tive a oportunidade de
acompanhar o processo que aconteceu dentro de mim, e que não existiria sem o
processo externo do grande organismo que é o Abração, com “O Olhar de Neuza”.
E agora, pós-processo de
enfrentamento de minhas próprias dúvidas, solucionei-as? Em partes sim, em
partes não. Mas não nega-las foi um grande passo para LÁ dentro de mim. Ignora-las
é como fechar os olhos, e fingir que se eu não vejo é porque não existe. E sei
que transpassar o véu destas dúvidas, vai me permitir ir além destes limites
que me impus, destas travas que o medo me coloca, e então estarei mais
disponível, plenamente entregue, ao serviço sagrado de ser atriz. O servir do
artista, servir a algo maior, servir a uma causa, servir a uma obra. Sem querer
atropelar meus processos, mesmos os ruins, desde que não me deixe derrotar ou
conformar por eles, mas que os compreenda, análise, e busque um ponto além
deste, regredir jamais.
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