sábado, 21 de setembro de 2013

O PROCESSO


Fui marcada, como uma tatuagem feita a ferro e fogo. Sabia que esse processo de montagem do espetáculo O OLHAR DE NEUZA traria mudanças. Tive medo. Quis desistir de tudo. Quis desistir de ser atriz. Senti-me incapaz, vazia. Sofri. Uma sensação absurda de vazio, a noção clara do tamanho da minha solidão. Tentei fugir como de costume, mas dessa vez, o processo cobrou vida vivida e eu, não tendo mais como fugir, vivo. Empresto minhas fragilidades, minhas contradições para dar vida a esse personagem. Enfrento-me perseguindo uma centelha, às vezes fugaz, de humanidade. Quando penso que encontrei algum caminho, se no dia seguinte não recomeço do zero ele se esvai em meio a minha vaidade.

Vasculhamos nossas vidas, deparamo-nos com nossa miséria humana cotidiana, emprestando um pouco de nossas contradições ao personagem. Digo nossas vidas, pois os que fazem teatro de grupo tem a possibilidade de participar intensamente do processo e assim, a CIA DO ABRAÇÃO pôde emprestar humanidade a Neuza.

Nossos ensaios foram poucos, cirúrgicos, profundos. A consciência de que seriam poucos nos fazia entender a importância de aproveita-los ao máximo. Mentiria se dissesse que foi fácil. Foi muito difícil. Escavar abriu e expos feridas que todos os dias eram novamente escavadas. Muitas questões foram levantadas: Quem eu sou? Por que escolho ser atriz? Por que naquilo a que chamamos dor ou feiura está contido tanta beleza?  Por que faço teatro? O que dizer através desse espetáculo? Tentamos entender profundamente o que estamos fazendo, por que estamos fazendo, qual o sentido pra cada um de estarmos juntos, construindo uma obra artística. São questões que levantamos todos os dias no ABRAÇÃO.

Partimos da intuição que aliada aos nossos desejos nos impulsionam. Depois conversamos muito, sempre. Tenho o privilégio de ter uma diretora inconformada, um grupo inconformado. Esse inconformismo gera movimento, pulso de vida em nossas obras teatrais de repertório que, a cada nova apresentação, são revistas num processo de entendimento do sentido de cada uma delas e de nosso papel de artista na sociedade em que vivemos.

No começo desse novo processo de trabalho a busca foi por me tirar o chão, o eixo, o prumo, limpar meu excesso de técnica e racionalidade procurando a perda do controle, procurando a energia verdadeira para cada situação exposta pela personagem  para chegar numa mulher que está cansada, fragilizada, cheia de dúvidas, uma mulher que sente-se feia e velha, deprimida, que toma remédios que a fazem suportar a vida que leva, que num rompante de loucura e lucidez descobre quem de fato ela é. O resultado dessa busca se vê nos primeiros minutos do espetáculo onde NEUZA corre muito. Um desafio a ser perseguido a cada novo espetáculo. Um caminho que pode me levar ao acaso da respiração ofegante, da fala entrecortada pela falta de ar, da tontura, do cansaço muscular e vocal levado ao limite.

A primeira leitura com o livro “A MULHER QUE CAI”, que inspirou a criação de nosso texto, do escritor curitibano Guido Viaro me causou uma certa estranheza. A medida em que fui relendo e entendendo melhor o contexto, acabei me apaixonando pela forma contundente e ao mesmo tempo idealista e sonhadora como o Guido apresenta essa personagem. Foi um mergulho no universo onírico e existencialista proposto por ele, nos devaneios dessa mulher cheia de sonhos, ideias e desejos maravilhosos, mas que estão “encobertos pelo entulho da rotina”. O período de escolha de trechos que poderiam fazer parte de nosso texto teatral foi prazeroso trazendo-me um novo ânimo. A boa e velha segurança, algo em que se agarrar. Haviam tantas passagens interessantes pra escolher.  A amarração da dramaturgia, tecida artesanalmente, foi um momento onde várias ideias e informações foram sendo agregadas. Texto, marcas, improvisos, músicas, tudo foi surgindo buscando traduzir poeticamente o universo de NEUZA.

Descobrir quem é essa mulher que cai, que cai em si. A vida a impele a fazer uma pausa. Ela revê suas escolhas, sonha em fazer diferente, se enfrenta tentando entender o que a incomoda. Ela entende o caminho que suas escolhas, pautadas pelo comodismo burguês, a levaram. As suas escolhas foram feitas por uma mulher moldada para ser assim. Ela se descobre desconhecida, não sabe quem ela é e, neste instante de pausa, quer tentar entender-se.Neuza está em pleno climatério, período que marca o fim do ciclo menstrual, a menopausa. Ela perda a sua função social maior de mulher, perde sua capacidade reprodutiva e sexual. Lida com o desgaste do casamento, a falta de libido típica desse período, o desânimo e a depressão, a perda da juventude, a noção cada vez mais clara de que tantos anos de anestesiamento psíquico bio social, formaram uma mulher que apenas seguiu um caminho já previamente traçado pela sociedade. Quem de fato ela é?

Durante o processo tivemos ainda a oportunidade de estabelecer alguns intercâmbios importantes:
  • Com o Diretor Paraguaio Wal Mayans que esteve acompanhando todo o processo e pode contribuir através do trabalho por ele desenvolvido denominado Primigenia Teatral.
  • Com a atriz e produtora Gaúcha Rosi Jacomelli radicada na Argentina e que esteve durante este ano trabalhando na montagem de seu monólogo O MAPA DO MEU MUNDO, também dirigido pela diretora artística da CIA DO ABRAÇÃO. Sua estreia foi em julho de 2013, na Sala Simone Pontes, da Sede da CIA DO ABRAÇÃO.
  • Com o ator, produtor e diretor da Cia Yepocá de Teatro, de Belo Horizonte, através da montagem de seu monólogo, também dirigido pela diretora artística da CIA DO ABRAÇÃO, intitulado DES ESPERA. Sua estreia foi em outubro de 2013, na Sala Simone Pontes, da Sede da CIA DO ABRAÇÃO


Partilhamos nossos processos, nossa opção pela solidão do monólogo, nossas pequenas conquistas e frustrações diárias. A riqueza do encontro com a humanidade de cada artista e do que surge através da cooperação mútua. 

Também partilhamos a experiência da oficina de Primigenia Teatral ministrada por Wal Mayans. Passar por uma oficina do Wal nos fortalece. Seu trabalho, desenvolvido durante anos através de sua formação com grandes mestres orientais, sua participação em importantes grupos teatrais europeus como o teatro antropológico de Eugênio Barba e posteriormente o desenvolvimento de sua pesquisa como fundador a ONG Tierra Sin Mal e como diretor do Grupo Paraguaio Hara Teatro, nos proporciona uma riqueza e um privilégio únicos. O rigor técnico, a importância da sacralização de nosso trabalho, de repensar a sociedade em que vivemos, a necessidade de resistirmos como teatreiros que somos, de resistirmos através de nosso trabalho diário que nos fortalece e nos prepara para a vida e a morte de estar no palco defendendo uma ideia, um ideal.

 Para a sonoridade do espetáculo, desde o início, a direção tinha uma intuição, um desejo de trabalhar com fados portugueses. Posteriormente fomos entender que fado, ou destino ou fardo, tinha mesmo muito a dizer sobre o mundo de NEUZA. Certeiras  as músicas foram chegando pra ficar nos inspirando e  impelindo a buscar cada vez mais sentido para o que estamos fazendo.  Em algumas, quadras de Fernando Pessoa foram musicadas. Elas foram compostas pela Diretora musical, compositora e cantora Karla Izidro que trabalha conosco desde 2007, e que desta vez, se disponibilizou a cantar ao vivo trazendo ao espetáculo uma riqueza impar. É um privilégio dividir a cena com a Karla uma artista madura, que compartilha do nosso pensamento sobre o fazer artístico, criando uma identificação que facilita o trabalho.

As primeiras imagens sugeridas pela direção também tem muito haver com o fado. Uma mulher, melancolicamente, apenas observa através dos vidros de uma janela molhada pela chuva. Seu olhar vê longe e ao mesmo tempo se vê, olha pra dentro de si mesma. Dessa imagem surge a necessidade de trabalharmos com uma janela. Nasce nosso cenário, com objetos leves que podem ser manipulados durante o espetáculo conforme a necessidade de cada cena propondo sua resignificação. Uma janela com sua folhas que se desprendem da base e viajam pelo espaço cênico ajudando a criar um ambiente onírico. Tudo é preto e conforme a incidência de luz, esses objetos aparecem ou desaparecem, flutuam ou encontram-se amparados. Envolvendo as janelas, grandes cortinas vermelhas, que vem do teto e se estendem por muitos metros pelo chão colorem o preto. Durante o desenrolar do processo, fizermos inúmeras pesquisas de utilização desse material que, simples e versátil, pôde nós oferecer muitas possibilidades. Ao final, ficou o essencial, o que de fato poderia nós ajudar a contar essa história.  Uma rosa vermelha repousa solitária num canto do palco. Folhas secas espalhadas pelo chão dão um tom amarelado ao espaço cênico e quebram com a quase monocromia do preto, propõe uma nova textura. Quando pisoteadas elas imprimem som ao espetáculo.

O envolvimento e interesse crescente de nosso iluminador Anriaider com este projeto, trouxe ao espetáculo um desenho de luz feito a quatro mãos. Outra parceria que se firma cada vez mais na medida em que nossas afinidades se solidificam.  Quadro a quatro a luz foi desenhada por ele e pela Letícia numa proposta de utilização de baixas intensidades, muitas sombras e poucas cores.

 A ESTREIA
A sensação é de ter ganho um inestimável presente. Agradeço imensaprofundamente a CIA DO ABRAÇÃO, a cada um de seus integrantes, a todos que ajudaram a construir essa história. Foi uma estreia mágica. O público presente embarcou no espetáculo, partilhando com a CIA DO ABRAÇÃO, cada instante proposto pela obra teatral, contribuindo para materializar essa noite especial.

A partir da estreia pude começar a enxergar melhor o caminho percorrido. Percebo como tudo foi sendo construído como uma teia tramada aos poucos, artesanalmente. Foram anos desde as primeiras ideias até a estreia. O caminho que trilhamos reflete as nossas escolhas e O OLHAR DE NEUZA é fruto delas. Escolhemos trabalhar por anos em um mesmo projeto até que ele se concretize.

Nesta primeira temporada pude sentir, através do contato com diferentes tipos de público que estiveram presentes, a força da obra. O OLHAR DE NEUZA emociona, faz rir e chorar. Plateias barulhentas e desatentas vão aos poucos silenciando e a energia própria da obra se instaura. Essa obra tem o que dizer e diz. A comunicação com o público se estabelece e isso tem sido muito gratificante.

Durante a temporada continuamos trabalhando buscando entender o que acontece com o público diante da obra; o caminho que o personagem precisa trilhar para que a obra possa ser degustada pelo ator e pelo espectador a cada sessão. A busca pela inteireza e plenitude diante de cada espectador nesse momento único de fruição da obra.

Posso agora incorrer num dos maiores enganos do ator: cegar-me com tantos elogios, permitir que o meu ego seja maior do que o teatro. Para que o teatro aconteça realmente é necessário travar uma luta diária comigo mesma, a cada sessão, buscando beijar a alma dessa personagem, buscando viver, através dela, cada fragmento de beleza e poesia que essa obra propõe.

Ao final da primeira temporada sinto-me recompensada pelas dores do início do processo onde quis desistir de tudo.  Através de NEUZA tenho a possibilidade de vivenciar o sublime encontro com o sagrado. Que eu possa viver intensamente cada sessão. Que o teatro aconteça a cada sessão. Que eu mereça a graça, a honra e o privilégio de estabelecer verdadeiramente a missão de ator.  


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