terça-feira, 13 de agosto de 2013

O Olhar de Neuza - por Isabelle Neri

Não, o Olhar de Neuza não fala apenas da menopausa. Menopausa é mero detalhe para uma mulher que chega a maturidade e coloca em questão sua própria vida e suas dores. O questionamento principal de Neuza está muito além dos calorões que o corpo físico lhe presenteou. Está em viver e questionar. Questionar os passos até agora. Questionar o casamento e a própria moralidade.
–Vou virar puta! – diz Neuza num momento de grito. Neuza traz a tona o melhor que a sensibilidade feminina pode sentir. Viver e não seguir os trilhos do trem como mera personagem. Ser Neuza hoje, uma mulher madura depois do que proporcionou a sociedade, para quem já foi bela e reprodutora, está além de apenas sentir calores. É questionar para compreender onde realmente está sua felicidade.
Fabiana Ferreira conduz a cena com maestria corporal e vocal. Precisa de muito pique para compor as explosões de Neuza. Neuza é uma fera enjaulada prestes a voar e a atriz Fabiana Ferreira nos mostra o olhar dessa fera, numa representação que nos leva ao riso e ao choro. Choro por nos fazer lembrar de alguma mulher que foi Neuza ou que seremos um dia. Por um olhar de Neuza que percebemos no rosto de uma mãe ou uma tia conhecida e o pior, em nenhum momento nos demos conta que aquele olhar tinha uma representatividade de dor intensa.
O Olhar de Neuza expõe uma ferida social: a mulher depois do ápice da maturidade que sentido ela tem para a própria sociedade? Eu como mulher, beirando os quarenta, sabendo que daqui a alguns anos talvez seja uma Neuza, que olhar terei? Da mulher que apenas segue a estrada ou da mulher que questiona e sabe o que a faça realmente feliz.

sábado, 10 de agosto de 2013

PROFESSORA NEUZA - por Edmundo Cezar


Neuza me cabe?
Neuza não cabe aos homens. 
Especialmente àqueles que andam por aí despreocupadamente crendo que os indivíduos somos resultados de um monte de carbono e água.
Neuza cabe aos homens sim. 
Mas só aos inteligentes ou dispostos.

Aprendi com Neuza que sou aLuno. Um sem luz de pouca luz, macho e aprendiz.
É difícil as vezes explicar a um aluno a importância e a diferença do teatro, em relação às outras linguagens artísticas, especialmente o audiovisual, que utiliza tanto do drama e de outros aspectos técnicos que o teatro também compartilha.
Se o aluno aLuno se dispuser a sair de casa e encontrar casualmente com o Olhar de Neuza atrás do espelho entenderá, ou melhor, sentirá, a sutil diferença da película e do calor teatral. Frieza e calor. A morte a vida.

Aprendi com a luz de Neuza. 
Ângulo, cor e intensidade a serviço do espetáculo. Foi assim que aprendi com um mestre, que meu olhar devia ser treinado a perceber esses aspectos na iluminação cênica. Mas como bom mestre ele deve ter ocultado ao aLuno outros tantos segredos que comecei a desconfiar ao ver Neuza. 

Não há luz de frente, excetuando-se uma lâmpada de tungstênio para a plateia, que me cegava ao sentar na exata cadeira em que me sentei. 
Neuza me mostrou que a luz de frente cega, por isso ela usa ângulos “indiretos” para revelar os contornos. O que vem de frente é tênue. Neuza não quer mais se cegar, quer ver a luz do lampião no fundo do espelho. 
Se a área da encenação fosse fragmentada, o aluno veria suas partes desenhadas no chão, iluminadas pelo que não é obvio. O bobo colocaria o refletor de frente, mas Neuza, que não é boba nem nada, usa e abusa das laterais, contras luzes que não sei bem de onde vieram, ausentes de cores, levemente aquecidos alguns e uma frieza culpada pelo calor que provoca quando, quase no final, ilumina o sentimento de Neusa materializado na rosa vermelha abandonada entre as folhas secas, com um lilás disfarçado de vermelho azulado.

Como o aLuno se iluminou com o cenário de Neuza! 
Tão pouco. Tão exato. Tão útil. Tão servil.
Óbvio seriam as folhas secas que dizem a emoção que o tempo passou. Mas Neuza não é óbvia.... quilos e quilos de folhas secas. Quanto pesa o sentimento passado e remoído? Como chumbo? Quanto pesa? 
Neuza caminha com folhas secas até os joelhos e com seu passado até o pescoço. Claro que as folhas não chegam aos joelhos, mas ali também não há chão para caminhar. Há sentimentos e passado... me deixem em paz com minhas imagens....

Porta, espelho, janela, grades, cortinas, arara, tecidos, roupas, objetos. Aprendo com Neuza que objetos em cena são para serem usados, isso já sabia. São para serem reinventados, também sabia. Mas aprendi o que isso significa quando é feito de maneira intensa e verdadeira. De verdade. Verdadeiro. Com verdade.

Quem veio primeiro, a luz ou o cenário de Neuza? Suas janelas me pedem luz, seus espaços me indicam luzes, através dela, a luz, o tempo, mas principalmente, a dor, dureza, tentativa de ser feliz, busca... Que achado tão instigante as grades de Neuza desenhadas nas folhas. Quis sentir em mim mesmo seu desenho, mas que tolo, eu era apenas espectador de Neuza. Neuza me ensina que a boa luz que ilumina é o encontro das boas sombras que ela oferece.

Na maioria das peças que o aLuno vi, em que músicos participavam ao vivo, saí com a plena certeza de que seria mais econômico um bom CD gravado com as canções. Em pouquíssimas, contadas nos dedos de uma única mão, tive convicção de sua utilidade. Neuza adiciona mais uma a minha lista.

A Neuza do espelho canta, encanta e faz parte do show. A Neuza do espelho. Trazendo luz e vida (da platéia) do fundo do reflexo de Neuza. A Neuza que ela queria ver no espelho. Vestida, bela, feliz, realizada. A voz que Neuza queria ter. 

A professora Neuza foi minha professora de interpretação. 
Eu, aLuno de atuar, aprendi com ela o que é ter o medo e a coragem de estar em cena. De verdade. Silêncio, pausa, subtexto, corpo. Espero que meus alunos vejam isso tudo.

Sem mostrar um peito, sem revelar uma bunda, sem abrir duas pernas, Neuza estava nua. Que coragem. Tenho medo só de pensar em ter essa coragem. Ser Neuza e você mesmo em cena, revelar a personagem e revelar-se junto... santo deus do teatro: protejei-me.

Professor é quem professa sua crença em público. Neuza faz isso do começo ao final. Não tenta me enganar. Professa sua fé de ser artista e de despojar-se no fazer.

Neuza, em sua encenação, me revela que escolher não é um verbo que se conjuga isolado. É melhor quando se escolhe junto. Mentirei se dizer que não me chocou a Neuza desbocada. Meu coração só voltou ao normal quando num ultimo xingamento Neuza retornou às suas reflexões. Ufa! Passou o medo do belo se embrenhar pelo grotesco.

Esperei um grande final, um grande grito, uma grande coisa. Que tolice. Se a vida não acabou como pode a peça acabar? Neuza vai para o espelho e vamos atrás. É inevitável aplaudir de pé. Inevitável.

Aprendi com Neuza sobre as mulheres. Sobre a mulher que quero ser em outra vida, cada vez mais próxima, sobre a mulher que tenho do meu lado, suas dores, seus medos, seu pensar.

O aLuno, aprendi que no teatro o humano se encontra com o humano e Neuza me ensinou como isso se dá.

Quero muito que meus alunos vejam o Olhar de Neuza na frente do espelho. Eles me chamam de professor. Que tolos. Talvez com Neuza desconfiem que sou apenas um aLuno.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Através do olhar de Neuza - Denize de Lucena.

Há pessoas que passam a vida à espera de que a felicidade lhe venha bater à porta. Que, num repente, os ventos mudem de direção e uma luz, numa fresta que seja, possa trazer um alento, arejando o ambiente e, com ele, um cômodo qualquer perdido entre o sótão e o porão, num espaço que, sem nos darmos conta, foi se formando dentro de nós.
Como se uma voz ao longe nos chamasse sem precisar ao certo ser uma cantiga de ninar ou um lamento de morte: um hiato, um instante de suspensão como se alguém, de posse do controle remoto, num gesto banal, simplesmente, parasse o tempo.
Nesse instante que não é mais o ontem, não ainda o amanhã, mas que, parado, deixa mesmo de ser, e se transforma num não-ser, um não-ser porque estando fora não pode entender o que se passa por dentro, e não sendo ação, se torna negar-a-ação.
É isso! É o que os olhos através da vidraça parecem dizer num silêncio que grita. Sim, não é delírio, O silêncio estampado nos olhos envidraçados por trás da vidraça pouco iluminada grita alto, quase insuportável.
E nós, meros espectadores, talvez num átimo de lucidez, nos damos conta de que é tarde de mais. O olhar que grita, em silêncio, envidraçado, nos atraiu, sem que possamos mais recuar. É um canto de sereia num olhar de Medusa.
E nós, agora atores nesta história, autômatos sob o olhar vazio que nos atrai, iniciamos a procissão, e vamos ocupando nossos lugares, ouvindo o partir das folhas secas que nos resgatam na memória impossível de precisar o momento exato, um convite a vasculhar, ou seria vasculhar-se?
Tarde de mais. Nova escuridão nos mantem em alerta diante do imprevisível. E uma voz que talvez viesse de dentro de nós mesmos nos atesta o instante de pausa do qual não podemos fugir. A pausa que nunca demos, porque a rotina da vida nos impõe um eterno ir, porque sempre temos inúmeros compromissos e um sem número de prioridades inadiáveis.
Impossível fugir agora! O controle remoto permanece em pausa. O olhar é agora algumas dezenas de olhares aos quais tememos encarar, mas que estão lá, e nós sabemos.
Não encarar, tentar fugir, não dar vazão ao que ficou por tanto tempo sob o controle. Controle. Passamos o tempo todo tentando ter o controle das nossas vidas e não percebemos que vamos aos poucos perdendo o controle de nós mesmos.
Um olhar se sobressai, e assusta, e intimida, e nos petrifica, porque o reconhecemos ou melhor, desconhecemos, pois é o nosso olhar que tomando vida própria se desloca do nosso rosto e vai se alojar no rosto de Neuza refletido no espelho. Um espelho sem face, que por isso mesmo nos atravessa.
Numa tentativa de fuga, buscamos voltar à rotina, à segurança da rotina com a qual nos habituamos, a rotina que nos coloca, numa zona de conforto milimetricamente limitada. Ah, é tão mais cômodo ter fronteiras determinadas! A rotina nos aprisiona, é verdade, mas ao mesmo tempo nos protege. -Nos protege?! - sim, nos protege. -De quê? De nós mesmos.
É tão mais fácil manter mente e mãos ocupadas, ter o ritmo do relógio para acompanhar, ter coisas importantes a fazer, em uma palavra, ser útil. -Pra quem?!- pra todos, pra sociedade, pra família, pros outros. -Pra si mesmo?! - Não. Não é importante ser útil pra si mesmo. Não há tempo para essas bobagens. Que importa?! A quem importa?!
Gostamos de tantas coisas que já desgostamos para depois tornar a gostar. Quem se importa?! O quarto arrumado, a comida feita, o lixo jogado fora. Tudo feito que nunca foi percebido porque só é visível o que se deixou de fazer.
Suspensos na pausa do tempo, ao mesmo tempo abrimos as portas para qualquer tempo, Perpassamos o tempo corrido e nos deparamos com a realidade de um tempo que foi percorrido mas que não foi vivido e que, talvez, já não haja mais tempo de se viver.
O que foi que fizemos do nosso tempo? O que foi que o tempo fez de nós? Ainda há tempo?! Quantas vezes desejamos parar o tempo?! Tantas outras pareceu se arrastar teimoso, a nos contrariar. As marcas no rosto incontestáveis gritam que o tempo passou e nós, que passamos a vida a esperar pelo tempo certo, nos damos conta dos últimos grãos de areia que se escoam rápido na ampulheta. Será tarde de mais?!
O enquadramento se repete, se multiplica, ora aqui, ora ali, apontando que a jornada está terminando. -Terminando?! - Como assim, se corremos uma vida inteira para garantir o momento de aproveitá-la?! Justo quando a rotina e os compromissos inadiáveis já não fazem mais parte do nosso dia?! Agora, que temos todo o tempo do mundo, o mundo não tem tempo pra nós?! Onde, em qual curva do caminho deixamos nossos sonhos e nossos desejos serem silenciados e nem se quer nos demos conta?! Que personagem é esse que habitamos como os grande bonecos carnavalescos, e que nos escondeu até de nós mesmos?! De quem são estes olhos que o espelho teima em refletir mas que não conseguimos re-conhecer?!
Um personagem à procura do ator, tentando dar vida a peças de figurino, objetos e partes de cenário que se negam à função.
Os risos logo se fazem ouvir. Difícil precisar o significado. Riso nervoso, disfarçado, riso de quem sabe mas não gostaria de lembrar que também terá o seu instante de pausa. Talvez já o tenha tido, até. Não consegui ri. As lágrimas fecharam as comportas impedindo que ele pudesse se quer nascer. O espelho não mente. O tempo é implacável. Não há mais tempo a perder.
Ninguém sabe quem é, e o mundo carece de príncipes meninos que surgindo do nada, no deserto da nossa alma, nos possa ver como únicos.
O tempo passou. E num momento nos damos conta de que apenas a nossa vida está em pausa. O vento sopra, crianças correm, barcos pedalinhos atravessam o lago e sacos de plástico bailam no ar insensíveis ao nosso momento.
O olhar se perde ao longe. Vaga. Como o barco sob a espuma. Os olhares se cruzam, Se reconhecem. Se cumpliciam. Se deixam abandonar. E nós, já não meros espectadores, nos cumpliciamos também e nos jogamos ao mar, novamente em procissão.
Como disse o poeta: “Navegar é preciso. Viver, não é preciso.”
Parabéns à Fabiana por se fazer de mar e navio. Parabéns à Carlinha por se fazer de vento e vela. Parabéns à Cia. do Abração por pintar na tela um crepúsculo que nos convida a lembrar que a noite é prenúncio da alvorada.

Um grande abraço,
Denize de Lucena.