sábado, 10 de agosto de 2013

PROFESSORA NEUZA - por Edmundo Cezar


Neuza me cabe?
Neuza não cabe aos homens. 
Especialmente àqueles que andam por aí despreocupadamente crendo que os indivíduos somos resultados de um monte de carbono e água.
Neuza cabe aos homens sim. 
Mas só aos inteligentes ou dispostos.

Aprendi com Neuza que sou aLuno. Um sem luz de pouca luz, macho e aprendiz.
É difícil as vezes explicar a um aluno a importância e a diferença do teatro, em relação às outras linguagens artísticas, especialmente o audiovisual, que utiliza tanto do drama e de outros aspectos técnicos que o teatro também compartilha.
Se o aluno aLuno se dispuser a sair de casa e encontrar casualmente com o Olhar de Neuza atrás do espelho entenderá, ou melhor, sentirá, a sutil diferença da película e do calor teatral. Frieza e calor. A morte a vida.

Aprendi com a luz de Neuza. 
Ângulo, cor e intensidade a serviço do espetáculo. Foi assim que aprendi com um mestre, que meu olhar devia ser treinado a perceber esses aspectos na iluminação cênica. Mas como bom mestre ele deve ter ocultado ao aLuno outros tantos segredos que comecei a desconfiar ao ver Neuza. 

Não há luz de frente, excetuando-se uma lâmpada de tungstênio para a plateia, que me cegava ao sentar na exata cadeira em que me sentei. 
Neuza me mostrou que a luz de frente cega, por isso ela usa ângulos “indiretos” para revelar os contornos. O que vem de frente é tênue. Neuza não quer mais se cegar, quer ver a luz do lampião no fundo do espelho. 
Se a área da encenação fosse fragmentada, o aluno veria suas partes desenhadas no chão, iluminadas pelo que não é obvio. O bobo colocaria o refletor de frente, mas Neuza, que não é boba nem nada, usa e abusa das laterais, contras luzes que não sei bem de onde vieram, ausentes de cores, levemente aquecidos alguns e uma frieza culpada pelo calor que provoca quando, quase no final, ilumina o sentimento de Neusa materializado na rosa vermelha abandonada entre as folhas secas, com um lilás disfarçado de vermelho azulado.

Como o aLuno se iluminou com o cenário de Neuza! 
Tão pouco. Tão exato. Tão útil. Tão servil.
Óbvio seriam as folhas secas que dizem a emoção que o tempo passou. Mas Neuza não é óbvia.... quilos e quilos de folhas secas. Quanto pesa o sentimento passado e remoído? Como chumbo? Quanto pesa? 
Neuza caminha com folhas secas até os joelhos e com seu passado até o pescoço. Claro que as folhas não chegam aos joelhos, mas ali também não há chão para caminhar. Há sentimentos e passado... me deixem em paz com minhas imagens....

Porta, espelho, janela, grades, cortinas, arara, tecidos, roupas, objetos. Aprendo com Neuza que objetos em cena são para serem usados, isso já sabia. São para serem reinventados, também sabia. Mas aprendi o que isso significa quando é feito de maneira intensa e verdadeira. De verdade. Verdadeiro. Com verdade.

Quem veio primeiro, a luz ou o cenário de Neuza? Suas janelas me pedem luz, seus espaços me indicam luzes, através dela, a luz, o tempo, mas principalmente, a dor, dureza, tentativa de ser feliz, busca... Que achado tão instigante as grades de Neuza desenhadas nas folhas. Quis sentir em mim mesmo seu desenho, mas que tolo, eu era apenas espectador de Neuza. Neuza me ensina que a boa luz que ilumina é o encontro das boas sombras que ela oferece.

Na maioria das peças que o aLuno vi, em que músicos participavam ao vivo, saí com a plena certeza de que seria mais econômico um bom CD gravado com as canções. Em pouquíssimas, contadas nos dedos de uma única mão, tive convicção de sua utilidade. Neuza adiciona mais uma a minha lista.

A Neuza do espelho canta, encanta e faz parte do show. A Neuza do espelho. Trazendo luz e vida (da platéia) do fundo do reflexo de Neuza. A Neuza que ela queria ver no espelho. Vestida, bela, feliz, realizada. A voz que Neuza queria ter. 

A professora Neuza foi minha professora de interpretação. 
Eu, aLuno de atuar, aprendi com ela o que é ter o medo e a coragem de estar em cena. De verdade. Silêncio, pausa, subtexto, corpo. Espero que meus alunos vejam isso tudo.

Sem mostrar um peito, sem revelar uma bunda, sem abrir duas pernas, Neuza estava nua. Que coragem. Tenho medo só de pensar em ter essa coragem. Ser Neuza e você mesmo em cena, revelar a personagem e revelar-se junto... santo deus do teatro: protejei-me.

Professor é quem professa sua crença em público. Neuza faz isso do começo ao final. Não tenta me enganar. Professa sua fé de ser artista e de despojar-se no fazer.

Neuza, em sua encenação, me revela que escolher não é um verbo que se conjuga isolado. É melhor quando se escolhe junto. Mentirei se dizer que não me chocou a Neuza desbocada. Meu coração só voltou ao normal quando num ultimo xingamento Neuza retornou às suas reflexões. Ufa! Passou o medo do belo se embrenhar pelo grotesco.

Esperei um grande final, um grande grito, uma grande coisa. Que tolice. Se a vida não acabou como pode a peça acabar? Neuza vai para o espelho e vamos atrás. É inevitável aplaudir de pé. Inevitável.

Aprendi com Neuza sobre as mulheres. Sobre a mulher que quero ser em outra vida, cada vez mais próxima, sobre a mulher que tenho do meu lado, suas dores, seus medos, seu pensar.

O aLuno, aprendi que no teatro o humano se encontra com o humano e Neuza me ensinou como isso se dá.

Quero muito que meus alunos vejam o Olhar de Neuza na frente do espelho. Eles me chamam de professor. Que tolos. Talvez com Neuza desconfiem que sou apenas um aLuno.

Nenhum comentário:

Postar um comentário