sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Através do olhar de Neuza - Denize de Lucena.

Há pessoas que passam a vida à espera de que a felicidade lhe venha bater à porta. Que, num repente, os ventos mudem de direção e uma luz, numa fresta que seja, possa trazer um alento, arejando o ambiente e, com ele, um cômodo qualquer perdido entre o sótão e o porão, num espaço que, sem nos darmos conta, foi se formando dentro de nós.
Como se uma voz ao longe nos chamasse sem precisar ao certo ser uma cantiga de ninar ou um lamento de morte: um hiato, um instante de suspensão como se alguém, de posse do controle remoto, num gesto banal, simplesmente, parasse o tempo.
Nesse instante que não é mais o ontem, não ainda o amanhã, mas que, parado, deixa mesmo de ser, e se transforma num não-ser, um não-ser porque estando fora não pode entender o que se passa por dentro, e não sendo ação, se torna negar-a-ação.
É isso! É o que os olhos através da vidraça parecem dizer num silêncio que grita. Sim, não é delírio, O silêncio estampado nos olhos envidraçados por trás da vidraça pouco iluminada grita alto, quase insuportável.
E nós, meros espectadores, talvez num átimo de lucidez, nos damos conta de que é tarde de mais. O olhar que grita, em silêncio, envidraçado, nos atraiu, sem que possamos mais recuar. É um canto de sereia num olhar de Medusa.
E nós, agora atores nesta história, autômatos sob o olhar vazio que nos atrai, iniciamos a procissão, e vamos ocupando nossos lugares, ouvindo o partir das folhas secas que nos resgatam na memória impossível de precisar o momento exato, um convite a vasculhar, ou seria vasculhar-se?
Tarde de mais. Nova escuridão nos mantem em alerta diante do imprevisível. E uma voz que talvez viesse de dentro de nós mesmos nos atesta o instante de pausa do qual não podemos fugir. A pausa que nunca demos, porque a rotina da vida nos impõe um eterno ir, porque sempre temos inúmeros compromissos e um sem número de prioridades inadiáveis.
Impossível fugir agora! O controle remoto permanece em pausa. O olhar é agora algumas dezenas de olhares aos quais tememos encarar, mas que estão lá, e nós sabemos.
Não encarar, tentar fugir, não dar vazão ao que ficou por tanto tempo sob o controle. Controle. Passamos o tempo todo tentando ter o controle das nossas vidas e não percebemos que vamos aos poucos perdendo o controle de nós mesmos.
Um olhar se sobressai, e assusta, e intimida, e nos petrifica, porque o reconhecemos ou melhor, desconhecemos, pois é o nosso olhar que tomando vida própria se desloca do nosso rosto e vai se alojar no rosto de Neuza refletido no espelho. Um espelho sem face, que por isso mesmo nos atravessa.
Numa tentativa de fuga, buscamos voltar à rotina, à segurança da rotina com a qual nos habituamos, a rotina que nos coloca, numa zona de conforto milimetricamente limitada. Ah, é tão mais cômodo ter fronteiras determinadas! A rotina nos aprisiona, é verdade, mas ao mesmo tempo nos protege. -Nos protege?! - sim, nos protege. -De quê? De nós mesmos.
É tão mais fácil manter mente e mãos ocupadas, ter o ritmo do relógio para acompanhar, ter coisas importantes a fazer, em uma palavra, ser útil. -Pra quem?!- pra todos, pra sociedade, pra família, pros outros. -Pra si mesmo?! - Não. Não é importante ser útil pra si mesmo. Não há tempo para essas bobagens. Que importa?! A quem importa?!
Gostamos de tantas coisas que já desgostamos para depois tornar a gostar. Quem se importa?! O quarto arrumado, a comida feita, o lixo jogado fora. Tudo feito que nunca foi percebido porque só é visível o que se deixou de fazer.
Suspensos na pausa do tempo, ao mesmo tempo abrimos as portas para qualquer tempo, Perpassamos o tempo corrido e nos deparamos com a realidade de um tempo que foi percorrido mas que não foi vivido e que, talvez, já não haja mais tempo de se viver.
O que foi que fizemos do nosso tempo? O que foi que o tempo fez de nós? Ainda há tempo?! Quantas vezes desejamos parar o tempo?! Tantas outras pareceu se arrastar teimoso, a nos contrariar. As marcas no rosto incontestáveis gritam que o tempo passou e nós, que passamos a vida a esperar pelo tempo certo, nos damos conta dos últimos grãos de areia que se escoam rápido na ampulheta. Será tarde de mais?!
O enquadramento se repete, se multiplica, ora aqui, ora ali, apontando que a jornada está terminando. -Terminando?! - Como assim, se corremos uma vida inteira para garantir o momento de aproveitá-la?! Justo quando a rotina e os compromissos inadiáveis já não fazem mais parte do nosso dia?! Agora, que temos todo o tempo do mundo, o mundo não tem tempo pra nós?! Onde, em qual curva do caminho deixamos nossos sonhos e nossos desejos serem silenciados e nem se quer nos demos conta?! Que personagem é esse que habitamos como os grande bonecos carnavalescos, e que nos escondeu até de nós mesmos?! De quem são estes olhos que o espelho teima em refletir mas que não conseguimos re-conhecer?!
Um personagem à procura do ator, tentando dar vida a peças de figurino, objetos e partes de cenário que se negam à função.
Os risos logo se fazem ouvir. Difícil precisar o significado. Riso nervoso, disfarçado, riso de quem sabe mas não gostaria de lembrar que também terá o seu instante de pausa. Talvez já o tenha tido, até. Não consegui ri. As lágrimas fecharam as comportas impedindo que ele pudesse se quer nascer. O espelho não mente. O tempo é implacável. Não há mais tempo a perder.
Ninguém sabe quem é, e o mundo carece de príncipes meninos que surgindo do nada, no deserto da nossa alma, nos possa ver como únicos.
O tempo passou. E num momento nos damos conta de que apenas a nossa vida está em pausa. O vento sopra, crianças correm, barcos pedalinhos atravessam o lago e sacos de plástico bailam no ar insensíveis ao nosso momento.
O olhar se perde ao longe. Vaga. Como o barco sob a espuma. Os olhares se cruzam, Se reconhecem. Se cumpliciam. Se deixam abandonar. E nós, já não meros espectadores, nos cumpliciamos também e nos jogamos ao mar, novamente em procissão.
Como disse o poeta: “Navegar é preciso. Viver, não é preciso.”
Parabéns à Fabiana por se fazer de mar e navio. Parabéns à Carlinha por se fazer de vento e vela. Parabéns à Cia. do Abração por pintar na tela um crepúsculo que nos convida a lembrar que a noite é prenúncio da alvorada.

Um grande abraço,
Denize de Lucena.


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